22/Jul/2025
O engenheiro agrônomo Romeu Afonso de Souza Kiihl, considerado o “pai da soja tropical”, foi trabalhar com soja por acaso. Natural de Caconde, município localizado no noroeste do estado de São Paulo e maior produtor paulista de café, ele queria se dedicar à pesquisa sobre esse grão, a sua paixão de infância. Mas, pelas circunstâncias, foi parar na soja, inexpressiva no País nos anos 1960. Formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (USP), com mestrado e doutorado em melhoramento genético pela Mississippi State University, dos Estados Unidos, Kiihl, hoje com 83 anos, desenvolveu durante 60 anos de profissão mais de 150 variedades de sementes de soja adaptadas a várias regiões do País, sobretudo ao Cerrado brasileiro.
Essas variedades transformaram o País no maior produtor e exportador de soja do mundo. Na safra 2024/2025, a produção brasileira bateu o recorde de 168,3 milhões de toneladas. Isoladamente, a soja é hoje o principal produto de exportação do agronegócio brasileiro em volume e receita e um dos pilares do saldo da balança comercial do País. Apesar de ter conseguido, por meio da pesquisa científica sobre melhoramento genético, espalhar a produção de soja pelo País, Kiihl é modesto. Para ele, o pulo do gato para sucesso da soja no Brasil central foi a combinação de três fatores: a genética do grão, a correção do solo e o agricultor brasileiro.
“Sou admirador do agricultor brasileiro porque a coragem que esse pessoal tem, eu acho incrível”. Ele lembrou que muitos agricultores migrantes saíram do Rio Grande do Sul, foram para localidades sem as mínimas condições e ficaram morando sob lonas amarradas no caminhão. Para o “pai da soja tropical”, que mesmo aposentado do serviço público continua fazendo experimentos em busca de novas variedades na sua empresa, a grande oportunidade que se abre atualmente para a pesquisa científica sobre a soja é o uso da edição de genes, técnica que permite a modificação precisa do DNA de um organismo vivo. “Hoje a edição de genes é uma ferramenta muito poderosa que vai permitir que a gente faça muitas modificações, de forma acelerada.”
O óleo de soja pode ser modificado para ficar um óleo tão bom quanto o óleo de canola, por exemplo, ou tão bom quanto óleo de oliva, diz o agrônomo, cuja família acaba de lançar um livro que conta a sua trajetória. Com outros pesquisadores, Kiihl participará do Congresso Brasileiro de Soja (CBSoja) e do Mercosoja 2025, entre os dias 21 e 24 de julho no Centro de Exposições e Convenções Expo Dom Pedro, em Campinas (SP). O tema de abertura do evento, que comemora os 100 anos da introdução da soja no Brasil e os 50 anos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Soja, é a evolução da soja no Mercosul. Segue a entrevista:
Por que o sr. decidiu ser agrônomo?
Romeu Afonso de Souza Kiihl: Fui fazer agronomia porque eu fiquei muito interessado em ser pesquisador na área de tecnologia de alimentos, e engenharia de alimentos fazia parte da agronomia. Em 1960, li uma notícia no jornal que o recém-criado Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital) havia contratado alguns agrônomos recém-formados e os estava enviando para os Estados Unidos para fazer pós-graduação. Aquilo me deixou extremamente entusiasmado, e falei: ‘É isso que eu vou querer fazer’. Além do mais, em Caconde, cidade onde nasci, nós tínhamos uma bolsa de estudos para quem terminasse o colegial em primeiro lugar e quisesse fazer agronomia ou medicina veterinária. Fui fazer agronomia com essa intenção de me especializar em tecnologia de alimentos. No segundo ano da escola, quando cursei a disciplina de genética, descobri do que eu realmente gostava. Decidi que iria ser melhorista de plantas.
Com qual planta o sr. queria trabalhar?
Romeu Afonso de Souza Kiihl: Decidi pelo café, a planta da minha cidade. Quando eu era criança, nas férias na fazenda do meu tio, eu gostava muito de café. Mas, no quinto ano da faculdade, optei pelas plantas anuais, não plantas perenes, como o café. Trabalhando com as anuais, achava que as coisas seriam muito demoradas. Escolhi arroz. Eu nem conhecia a soja.
E como o sr. foi parar na soja?
Romeu Afonso de Souza Kiihl: Quando eu me formei, tive muitas propostas de trabalho. Uma delas foi para trabalhar com soja, na seção leguminosas do Instituto Agronômico de Campinas (IAC). Queria trabalhar com arroz. Mas, como um jovem meio, assim, eu diria meio convencido, queria ser convidado. E, como eu não recebia esse convite, terminei aceitando trabalhar com soja.
Foi por acaso que o sr. foi trabalhar com a soja?
Romeu Afonso de Souza Kiihl: Sim. Um colega, uma vez, encontrou-se comigo e falou: ‘Poxa vida, você foi tão bom aluno, e a gente imaginava que fosse ter um futuro brilhante em pesquisa’. Isso porque eu iria trabalhar com soja, uma cultura sem expressão alguma. Naquele ano, 1965, o Estado de São Paulo inteiro plantava 20 mil hectares de soja, e o Brasil produzia 490 mil toneladas. Mas a soja logo me entusiasmou porque é uma leguminosa que fixa o nitrogênio no solo por meio de uma simbiose com uma bactéria. Não é preciso usar adubo nitrogenado no cultivo, é uma coisa maravilhosa.
E como o sr. foi fazer pós-graduação nos EUA?
Romeu Afonso de Souza Kiihl: Eu aguardava nomeação no IAC. Fazia dois anos que o então governador de São Paulo, Adhemar de Barros (governou São Paulo entre 1947-1951 e 1963 -1966), não liberava os recursos. Aceitei uma bolsa de estudos no Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, que tinha uma parceria com a Fundação Rockefeller. Por meio de um convênio com a seção de leguminosas, a fundação norte-americana mantinha um centro de pesquisas espetacular em Mattoon, no Estado de Wisconsin (EUA), que fazia pesquisas no Cerrado. Mas conheci o doutor Edgard Emerson Hartwig, que era o melhorista de soja da Universidade do Mississippi (EUA). Ele estava de passagem pelo Brasil, acompanhado pelo doutor Francisco de Jesus Vernetti, que foi fundamental na minha vida. Vernetti me aconselhou a ir para o Mississippi trabalhar com Hartwig, que estava desenvolvendo o tipo de soja de que o Brasil precisava, a adaptada ao Sul do País. É para lá que você tem de ir, disse ele.
O sr. saiu do Brasil já focado a estudar melhoramento genético de soja?
Romeu Afonso de Souza Kiihl: Saí do Brasil para fazer o mestrado em melhoramento de soja. Hartwig me preparou para entender a importância da latitude na adaptação da soja. Estudei alguns cruzamentos nas condições de Stoneville (EUA), a 33 graus de latitude. Simulamos as condições de Campinas, onde eu ia trabalhar, que era 23 graus de latitude. Então, era um trabalho de chinês. Todo dia ia a campo: de tardezinha cobria as plantas, nove horas da noite ia lá e descobria, mas aprendi muito. Voltei para o Brasil, trabalhei por oito anos no IAC e depois fui para o Instituto Agronômico do Paraná (Iapar). Voltei para os Estados Unidos para fazer PhD (o mais alto grau acadêmico). Voltei para o Brasil em 1977. Tínhamos montado um programa de pesquisa de melhoramento de soja no Iapar, muito bonito, muito bem organizado. O programa de soja do Iapar foi absorvido pela Embrapa, onde fiquei por 25 anos. Embrapa é o sonho do sonho. O Centro Nacional de Pesquisa de Soja hoje deve ter ao redor de 70 pesquisadores, todos com PhD nas melhores universidades do mundo. Não existe lugar nenhum no mundo um grupo tão grande, tão bem treinado como nós temos aqui no Brasil. Na Embrapa fizemos variedades de soja adaptadas para o Brasil inteiro.
Na sua avaliação, qual foi o pulo do gato que houve na soja para se ter variedades que possam ser cultivadas praticamente no País todo?
Romeu Afonso de Souza Kiihl: O sucesso da soja no Brasil central é a combinação de três coisas. A genética, que fez a soja com o período juvenil longo; os solos, que foram corrigidos através de calagem e fertilização; e o agricultor brasileiro. Eu sou admirador do agricultor brasileiro porque a coragem que esse pessoal tem, eu acho incrível.
Como assim?
Romeu Afonso de Souza Kiihl: O pessoal que saiu do Rio Grande do Sul e foi para um lugar que não tinha condição alguma, que ficou morando sob lonas amarradas no caminhão. Bem no começo da minha vida, passei por um lugar chamado Chapadão dos Gaúchos. Era um posto de gasolina. Hoje é a cidade Chapadão do Sul, no norte de Mato Grosso do Sul. É uma cidade enorme, com grande progresso. Quando a soja entra numa região, leva muita coisa além dela: tecnologia, progresso e IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) para a região. Pode pegar as cidades do Brasil central, vai para Sinop (MT), vai para Lucas do Rio Verde (MT), Primavera do Leste (MT), Chapadão do Sul. É uma maravilha. Sou um admirador desse pessoal.
Quando começou a vida como pesquisador de soja, o sr. acreditava que o Brasil teria esse desempenho na produção do grão? Acreditava que o País seria o celeiro do mundo?
Romeu Afonso de Souza Kiihl: É engraçado, acho que era uma coisa de sonho, sim. Bem no começo da minha vida, achava que, como nós não tínhamos nem fósforo nem potássio, deveríamos comprar o máximo que houvesse desses elementos e fazer montanhas e montanhas de adubos, guardados no Cerrado para poder recuperar o solo. Sempre quis recuperar o Cerrado.
E a questão de ser o celeiro do mundo?
Romeu Afonso de Souza Kiihl: Acontece o seguinte na produção de grãos. Os Estados Unidos praticamente já utilizaram o que tinham de utilizar da área. Para plantar mais soja, têm de plantar menos milho. E milho é muito importante para eles. Então, quem vai produzir soja para o mundo é Brasil, Argentina, Paraguai, um pouco do Uruguai. Tem gente que fala que a China pode crescer muito, mas eu não acredito. Se eu fosse um chinês e tivesse uma área para produzir, plantaria arroz, trigo ou milho. A produtividade dessas lavouras é muito maior por hectare comparada à produtividade da soja. Onde você produz cinco toneladas de soja por hectare, você produz 12,5 toneladas de milho. E é muito mais barato transportar, por navio, uma tonelada, de soja do que uma de milho. Então, todos os outros países que puderem produzir soja e milho, darão preferência para milho. A soja pode estar em rotação, mas não vai ser a grande cultura. O Brasil, ao contrário, consegue produzir soja e milho no mesmo ano. Isso é um negócio que ninguém tem. É só a América do Sul. Imagino que parte da África poderia fazer isso, mas as dificuldades da África seriam muito grandes.
Atualmente é possível plantar soja em todas as regiões Brasil, praticamente. Qual é o próximo desafio para soja na sua opinião?
Romeu Afonso de Souza Kiihl: Eu não diria desafio, mas diria oportunidade. Hoje a edição de genes é uma ferramenta muito poderosa que vai permitir que gente faça muitas modificações. Então, por exemplo, o óleo de soja pode ser modificado para ficar um óleo tão bom quanto o óleo de canola, por exemplo, ou tão bom quanto o óleo de oliva. Hoje é mais fácil manipular esses genes por meio da edição do que seria por meio de um melhoramento tradicional. Não digo que não se possa fazer por melhoramento tradicional, mas a edição facilita, acelera. Acho que vamos ter muito avanço.
Como é que o senhor vê a evolução da agricultura e a preservação do meio ambiente? É compatível ter uma agricultura de larga escala com preservação do meio ambiente?
Romeu Afonso de Souza Kiihl: Totalmente compatível. O agricultor não quer destruir o meio ambiente, não. O agricultor quer preservar. Precisamos usar a expressão agricultura regenerativa. A ideia é você entregar para a próxima geração algo melhor do que você recebeu. O sistema de plantio direto, mantendo a cobertura vegetal do solo o tempo todo, é uma coisa maravilhosa. E, além do mais, nós temos vários casos caminhando para a integração da lavoura com a pecuária, da lavoura, com a pecuária e a floresta. O Brasil é modelo para o mundo. O pessoal fala mal da gente, mais por questões comerciais, na minha opinião. No caso da soja, você consegue produzir o grão sem precisar de nenhum nitrogênio vindo do petróleo. O Brasil resolve e é eficiente para produzir. Então, ecologicamente, a soja é uma cultura que está a favor do meio ambiente.
Qual é a nova fronteira agrícola da soja?
Romeu Afonso de Souza Kiihl: A grande expansão mesmo é Matopiba (região formada pelos Estados de Maranhão Tocantins, Piauí e Bahia). Além da expansão para área de renovação de pastagem. Se você recuperar a pastagem com soja, a produção de soja paga a recuperação da pastagem e a pastagem dura mais do que duraria se não tivesse soja no sistema. A soja é vantajosa na recuperação de pastagens.
A expansão da soja para a África pode ser uma ameaça para o Brasil?
Romeu Afonso de Souza Kiihl: Não, só se levar o produtor brasileiro para lá. O agricultor brasileiro é o exemplo do empreendedorismo corajoso. Nós demos sorte. Os imigrantes, principalmente alemães e italianos, que vieram para cá, eram de origem agrícola. E as propriedades se tornaram muito pequenas, porque as famílias eram grandes. Então, a única solução que tinham era sair do Rio Grande do Sul e procurar áreas maiores. O pessoal cresceu bem para o oeste do Paraná, depois foi para Mato Grosso do Sul e foi subindo. Hoje a soja está no Brasil todo.
Qual seria o conselho que o sr. daria para os novos agrônomos que estão chegando à profissão?
Romeu Afonso de Souza Kiihl: Estudar o máximo possível. Hoje as escolas oferecem muitas opções de estudo. Acompanho muito o pessoal de Mato Grosso e fico impressionado com o bom nível da nova geração que está chegando ao mercado, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, os agricultores estão envelhecendo. E a nova geração não está querendo estudar agronomia. Acompanho bastante os trabalhos científicos. Uma parte dos trabalhos tem um ou dois americanos e meia dúzia de chineses. Uma parte da universidade está infestada de chineses que foram para lá e se tornaram professores.
Por que eles estão ocupando esses cargos?
Romeu Afonso de Souza Kiihl: Porque não tem americano. E aqui no Brasil tem muito brasileiro fazendo bom trabalho. Alguns espetaculares.
Fonte: Broadcast Agro.