16/May/2025
O título se refere a um livro infantil publicado pela editora Ática que, no original, vem em formato de interrogação. Eu o trouxe como afirmação. O livro trabalha com os opostos, mostrando que algo que classificamos de uma forma (frio) pode gerar o efeito oposto (quente, como a queimadura por gelo seco). É esse o caso da guerra tarifária Estados Unidos-China na cadeia da soja. Sua consequência é gerar mais demanda pela soja brasileira. Mas o efeito, resultante dessa maior demanda, é prejudicar a indústria de processamento brasileira, que é composta pelas mesmas empresas que exportam soja em grão. Temos recebido inúmeros pedidos de comentários sobre as consequências da guerra tarifária no comércio Brasil-China na cadeia da soja, inclusive de veículos de mídia chineses.
Passado um mês do acirramento da disputa, nossa resposta é sempre a mesma: não é positivo para a indústria de processamento de soja e, com isso, não é positivo para o setor de proteína animal, que consome o farelo de soja resultante do processamento, nem para o consumidor brasileiro, que compra óleo no supermercado, tampouco para o setor de biocombustíveis, que utiliza óleo de soja na produção de biodiesel. A imposição de tarifas recíprocas entre Estados Unidos e China resultou, no caso do comércio de soja, em um aumento da demanda chinesa pela soja em grão brasileira. A China é o maior importador do produto, comprando entre 70% e 75% do total exportado pelo Brasil, mas concentrando suas importações apenas no grão.
O país asiático não importa farelo de soja, pois optou por processar internamente. Foi uma escolha estratégica para garantir segurança no fornecimento de proteína vegetal e, assim, viabilizar o crescimento da produção de proteína animal, necessária com o avanço da urbanização e o consequente aumento do consumo de carne. Devido à expressiva participação da China na demanda brasileira (70%-75%), quando o país asiático aumenta suas compras, há elevação nos preços da soja no Brasil. No entanto, como esse movimento decorre da menor demanda por soja norte-americana, mesmo durante a entressafra nos Estados Unidos, o mercado passa a esperar que os norte-americanos processem mais soja e coloquem mais derivados no mercado, ou seja, o efeito oposto ao observado aqui.
Quando um país destina mais soja à exportação e outro ao processamento, surgem distorções. A principal delas é a desvalorização dos produtos processados no país cuja soja está mais demandada, no caso, o Brasil. Se a China se defende da guerra comercial comprando mais soja do Brasil, e os Estados Unidos se protegem estimulando o processamento interno, o Brasil também precisa se defender. Quando dois se defendem, o terceiro não tem escolha. Foi anunciada, no fim de semana passado, uma trégua nas tarifas recíprocas entre Estados Unidos e China. Segundo o que foi divulgado, haverá uma redução substancial. No entanto, como os Estados Unidos estão na entressafra e a China não vai arriscar seu abastecimento interno, não acredito que a demanda chinesa pela soja brasileira vá diminuir.
O que pode acontecer é a estabilização desse crescimento, como vimos na guerra comercial 2017/2018, quando o prêmio da soja brasileira atingiu um patamar proibitivo para a China. Ainda não chegamos a esse ponto. Por isso, insisto: o Brasil precisa se defender. A defesa do Brasil precisa ser por meio do estímulo ao processamento de soja, para conter os efeitos negativos gerados pela maior demanda chinesa. O frio pode ser quente. E nossa sorte é já contarmos com um mecanismo pronto de estímulo ao processamento: o mandato de biodiesel. Hoje, o Brasil tem teor de 14% de biodiesel no diesel. De acordo com o cronograma planejado no ano passado, esse porcentual deveria ter subido para 15% em março deste ano.
No entanto, devido ao aumento do preço do óleo de soja para cozimento, registrada entre setembro e dezembro do ano passado, o governo federal decidiu não implementar o aumento. A decisão foi tomada em fevereiro, pouco antes da data prevista para a entrada em vigor da nova mistura. O governo foi excessivamente conservador e justificou que não queria interromper a trajetória de queda dos preços no varejo, já em curso à época. Desde então, já deixamos março e abril para trás. E o preço do óleo de soja no supermercado acumula quatro meses de queda, totalizando uma redução de 5,7% segundo o IPCA/IBGE.
Das 16 metrópoles pesquisadas, 12 registraram quedas expressivas, duas tiveram quedas moderadas e apenas uma apresentou aumento desprezível. O cenário de queda nos preços do óleo no varejo está consolidado. Portanto, a preocupação que levou o governo a não elevar o teor para 15% já não se sustenta. Em paralelo, embora não tenha sido dita de forma explícita, os preços do biodiesel também vêm apresentando queda em 2025. Entre dezembro de 2024 e abril de 2025, o recuo foi de 13,8%. Ou seja, do ponto de vista inflacionário, o governo federal deveria estar despreocupado. Seu foco agora deveria ser em proteger a indústria nacional de processamento de soja, estimulando maior demanda por óleo para biodiesel e, assim, consequentemente, levando a indústria processar mais soja.
Não se trata de demonstração de força com a China, conforme tentaram de forma frustrada os Estados Unidos. Trata-se de não permitir que as distorções causadas pela guerra comercial prejudiquem a indústria brasileira e, de quebra, sinalizar à China que queremos adicionar mais valor à pauta de exportações de commodities agropecuárias do Brasil. Defender a indústria da soja significa defender a indústria de proteína animal do Brasil. Mais soja processada gera mais farelo de soja, reduzindo custos para a produção de proteína animal. Bovinos, suínos, aves, peixes, vacas de leite, todos consomem farelo de soja. E mesmo o contra-argumento em defesa do aumento do teor, que é a conjuntura de preços de biodiesel acima do diesel, perde força diante da redução dos preços do farelo de soja, que o aumento do teor de biodiesel promove.
A produção de carnes bovina, suína, aves, peixe, ovos e leite, representa o dobro do valor de diesel, em termos de preços ao produtor. O impacto do biodiesel ocorre sobre apenas 14% do volume de diesel utilizado. Já o farelo de soja responde por 15% a 20% do custo de produção de proteína animal. Ou seja, uma redução no preço do farelo de soja neutraliza o aumento no custo do diesel, provocado pelo biodiesel, e ainda reduz preços das proteínas. Assim sendo, mais biodiesel gera desinflação por conta da redução dos preços da proteína animal. O remédio contra os impactos negativos da guerra comercial na indústria da soja é mais biodiesel no diesel. Fonte: André Meloni Nassar. Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove). Broadcast Agro.