05/Aug/2024
A disputa pelo controle da fabricante de celulose Eldorado Brasil já se tornou uma das mais longas, e pesadas, brigas corporativas da história recente dos negócios no Brasil. O imbróglio, que colocou frente a frente dois grupos gigantescos: a holding brasileira J&F Investimentos (dona da JBS, entre outros negócios) e a indonésia Paper Excellence, e que já dura seis anos, envolve uma cifra que supera os R$ 15 bilhões. E não parece próximo de terminar. Seu resultado, além disso, pode ter desdobramentos profundos até no agronegócio brasileiro, uma vez que colocou em discussão a posse de terras no País por empresas estrangeiras. O mais recente lance dessa longa disputa, iniciada em 2018, ocorreu no dia 30 de julho, quando o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) decidiu manter uma liminar que suspende a transferência das ações da Eldorado para o grupo indonésio até o julgamento final de uma ação popular que questiona o negócio. A briga entre os dois grupos remonta a 2017.
Naquele ano, o grupo J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, atravessando um momento delicado após as denúncias de corrupção vindas à tona na Operação Lava Jato, precisava vender ativos para fazer caixa. Um desses ativos era a Eldorado, uma fabricante de celulose com fábrica em Três Lagoas (MS). O negócio foi fechado com a Paper Excellence, controlada pelo bilionário indonésio Jackson Wijaya. A Paper comprou, à época, 49,41% da Eldorado pelo equivalente a R$ 3,77 bilhões. Pelo acordo, ficaria com o direito a adquirir os 50,59% restantes das ações da Eldorado que permaneciam com a holding dos Batista, num negócio que envolveria ao todo R$ 15 bilhões, em valores da época. Mas, as condições mudaram, a holding se recuperou, os valores passaram a não ser tão atrativos e o acordo acabou indo parar na Justiça; A J&F alegava que os asiáticos não liberaram algumas garantias para pagamentos de dívidas que haviam sido acertadas. A Paper pediu, no fim de 2018, que a questão fosse decidida por uma corte arbitral.
Entre março de 2020 e fevereiro de 2021, a International Chamber of Commerce (ICC Brasil) se debruçou sobre o caso e decidiu, por três votos a zero, que o grupo J&F teria efetivamente de vender 100% da Eldorado Celulose ao grupo asiático, nos termos do acordo firmado entre as partes em 2017. Mas, a J&F pediu na Justiça a anulação da arbitragem, alegando conflito de interesses de um dos árbitros, por relações com um escritório de advocacia que defendeu a Paper, e dizendo também que a sua defesa sofreu espionagem cibernética. A Paper informou que lamenta que o contrato de compra e venda da Eldorado Celulose, assinado em 2017, ainda não tenha sido cumprido pela J&F, que continua utilizando manobras processuais meramente protelatórias. Tais ações afrontam o Poder Judiciário e impedem o fechamento definitivo do negócio. Apesar das contestações da J&F, o caso foi avançando em favor da Paper na Justiça.
Em outubro do ano passado, o grupo indonésio já havia conquistado o placar de 2 a 0 em votos de desembargadores da segunda instância do Tribunal de Justiça de São Paulo e precisava de apenas mais um desembargador favorável, somando três votos de cinco possíveis, para ter destravada a liberação para assumir a empresa. No entanto, em 23 de janeiro, um dia antes da votação do terceiro desembargador, o ministro Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça, suspendeu o julgamento, acatando um pedido de liminar da J&F. A reviravolta no caso se deu pela entrada em pauta da questão da posse de terras por estrangeiros. Tudo começou em 18 de maio do ano passado, quando Luciano Buligon, ex-prefeito de Chapecó (SC), atualmente filiado ao MDB, ajuizou uma ação popular pedindo a declaração de nulidade do contrato de compra e venda das ações da Eldorado.
Ele citou, como argumento para a ação popular, uma ata notarial registrada por um empresário e político de Chapecó, Valdir Crestani, que dizia ter tomado conhecimento, por meio de produtores rurais, que a Eldorado estaria sondando comprar terras na região e que isso colocaria "em risco a nossa economia regional", se a empresa fosse assumida por um grupo estrangeiro. A ação popular de Buligon foi considerada inválida no dia 26 de maio do ano passado, uma vez que a juíza federal Helena Menegotto Pozenato entendeu que uma ação do tipo requisitaria a anulação e indenização por ato que trouxesse prejuízo ao patrimônio público, mas isso não seria o caso num acordo de compra e venda de ações. Buligon recorreu, então, em 6 de junho, ao TRF-4, e, por sorteio, o recurso foi distribuído ao desembargador Rogério Favreto. Foi concedida uma liminar barrando o negócio até que o mérito da questão fosse julgado, decisão que foi mantida no novo julgamento do dia 30 de julho.
A Paper afirma que não faz sentido uma produtora de celulose baseada em Três Lagoas (MS), comprar terras em Santa Catarina, a cerca de mil quilômetros de distância da fábrica, devido aos custos logísticos envolvidos e à necessidade de proximidade do negócio. Para o grupo indonésio, a alegação seria fraudulenta. Os executivos da empresa reclamam que Buligon e Crestani, que foi secretário de desenvolvimento rural de Chapecó, fizeram parte do mesmo grupo político de um membro do conselho de administração da J&F: Gelson Luiz Merisio, ex-deputado estadual catarinense e ex-presidente da Assembleia Legislativa de Santa Catarina. Merisio disputou o governo do Estado em 2018, com o apoio de Buligon, mas não foi eleito. Crestani fez doação de R$ 23 mil para esta campanha, e em 2016 doou R$ 20 mil para Buligon, quando este disputava a prefeitura de Chapecó. Buligon, que foi prefeito de Chapecó na época do acidente aéreo envolvendo o clube de futebol Chapecoense e que ficou conhecido por ter perdido esse trágico voo, se defende dizendo que, como advogado, o seu interesse no caso é jurídico, e não político.
Merisio foi presidente da Assembleia Legislativa quando Buligon era prefeito, e por esse motivo tiveram maior proximidade na época. A discussão em torno da legalidade de a Paper Excellence assumir a Eldorado se baseia na lei 1.179, de 1971, que veda empresas ou pessoas estrangeiras de serem donas de terras brasileiras com área acima de 50 módulos fiscais, medida que muda de cidade para cidade, mas que não pode passar de 25% do território do município em mão de estrangeiros e desde que não supere os 10% do total com donos do mesmo país. Apenas com uma aprovação especial do Congresso Nacional ou do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) algum investidor estrangeiro pode ultrapassar essas barreiras. A questão das terras é crucial nesse negócio. Como a matéria-prima para produção da celulose é a madeira (nesse caso, o eucalipto), os fabricantes costumam manter suas próprias plantações, para não terem surpresas quanto ao fornecimento. O tema ainda não havia aparecido na disputa nos muitos anos de brigas entre os Batista e a holding de Wijaya.
Mas, agora, tem o potencial de definir o rumo do negócio. Executivos da Paper confidenciam que o único caminho que imaginam para não saírem vencedores da disputa é exatamente por meio dessa questão das terras. Segundo seus executivos, a J&F se fia numa cláusula do contrato assinado entre as partes em que a CA Investment, empresa brasileira criada pela Paper para fazer a transação, deveria estar "licenciada e qualificada", com todas as condições legais para assumir a Eldorado, no País. Na cláusula 10 do contrato, que trata das declarações e garantias da compradora, o texto informa que a compradora deve ter praticado todos os atos necessários para concretizar a transação e que a assinatura do contrato não constitui violação a nenhuma lei, nem depende de qualquer aprovação ou autorização de qualquer autoridade. Para a J&F, então, o fato de os rivais não terem pedido e obtido autorização do Congresso para assumir as terras da Eldorado, que incluem 230 mil hectares de floresta de eucaliptos, tornaria o contrato nulo.
A Lei de Terras de 1993, que atualiza a de 1971, afirma que até mesmo arrendamentos feitos por empresas controladas por estrangeiros necessitariam de autorização. Os executivos da Paper se defendem dizendo que a empresa comprou um complexo industrial, e que não há interesse nas terras, mas, sim, na celulose dos eucaliptos. Também alegam que a Paper poderia arrendar ou firmar parcerias para receber o produto dessas terras, sem deter a titularidade delas. A Paper Excellence não comprou nem tem a intenção de explorar terras no Brasil, diz a empresa. Em resposta a isso, a J&F alega que, num negócio desse porte, que envolve anos de plantações, não faz sentido para uma empresa não controlar suas terras, até por conta dos riscos de desabastecimento, e que, além disso, até mesmo a sede da Eldorado fica num espaço rural que excede os limites legais. A Paper retruca que nem mesmo existe um rito oficial, já utilizado por outras empresas, para estrangeiros pedirem a liberação de terras para o Congresso, antes de se fechar uma aquisição de uma empresa brasileira.
E, se esse entendimento defendido pelos rivais prevalecer, muitos investimentos estrangeiros no Brasil, de diversos setores, serão colocados em risco. Do lado da J&F, os advogados afirmam que essas liberações não são difíceis de serem feitas, tanto que existiriam hoje, em mãos de estrangeiros no Brasil, 6,5 milhões de hectares, mais do que toda a área utilizada para a plantação de arroz, feijão e algodão somados. O problema é que a Paper precisaria liberar muita terra de uma vez só, ao contrário das outras empresas que foram adicionando áreas passo a passo, e, por isso, ela deveria ter pedido a licença antes de fechar a compra. Essa questão das terras pode afetar outras empresas. Como se percebe, a guerra de versões é extensa, com argumentos e contra-argumentos de lado a lado. E, dado o imenso contingente de advogados e lobistas disponíveis em ambos os lados, é difícil encontrar especialistas sobre o assunto sem interesse direto na vitória de um dos lados.
O presidente de um dos poucos grandes escritórios de advocacia que não representam nenhuma das partes do caso afirmou, sob condição de anonimato, concordar que a vitória da J&F no caso colocaria em risco todo o arcabouço de compra de empresas brasileiras por estrangeiras em setores agrícolas e de energia, por exemplo. Um levantamento com as 100 maiores empresas do agronegócio atuantes no Brasil indica que 18 delas têm origem estrangeira e que 44 possuem ações cotadas em bolsas de valores, de forma que parte representativa de seu capital pode ter sido adquirida por sócios estrangeiros. Segundo o professor titular de Direito Econômico da Universidade de São Paulo Gilberto Bercovici, que tem se manifestado sobre o tema, a lei de 1971 é de uma época muito diferente da atual, quando nem havia Lei das Sociedades Anônimas ou um mercado de capitais relevante, e tratava apenas da compra de terras diretamente por estrangeiros. Precisaria reformar a lei ou fazer outra. Se a forma de resolver o assunto for simplesmente anular tudo, vai ser o caos. Hoje, se uma empresa estrangeira compra ações de uma brasileira, ela não pede autorização pelas terras, porque não há mudança no registro das terras quando se faz uma aquisição dessas.
Advogados da J&F, porém, defendem que a lei deve ser simplesmente aplicada e que discussões sobre se elas podem ou devem ser mudadas não cabem na disputa pela Eldorado. Também alegam que a Paper estaria querendo destruir todo o arcabouço de soberania nacional de proteção das terras brasileiras, um tema muito caro a diversos países do mundo na conjuntura geopolítica atual. A advogada Tatiana Bonatti Peres, atuante na área de Direito Imobiliário, Agronegócios e fusões e aquisições, concorda com o argumento da J&F. Está se criando uma opinião pública de que o tema é novidade, mas desde 2010 ele está consolidado, depois de um parecer da Advocacia-Geral da União, sancionado pelo presidente República, que determina a toda a administração pública, incluindo o Incra, que ela deve aplicar a lei de 1971. Existe um manual do Incra que estabelece todo o procedimento de compra de ações de empresas com terras. E muitas empresas têm me procurado nos últimos tempos, porque o Incra está aplicando mais a lei do que fazia no passado. A única certeza em todo esse imbróglio, porém, é que ainda está longe de terminar. Fonte: Broadcast Agro. Adaptado por Cogo Inteligência em Agronegócio.