16/Jul/2025
Qual a conexão entre crime organizado, segurança internacional e mudanças climáticas? Essa foi a pergunta que o cientista político canadense e cofundador do Instituto Igarapé, Robert Muggah, tentou responder para uma audiência entusiasmada no Rio de Janeiro no início de junho. Apesar de estarem intrinsecamente ligados, poucas são as soluções que considerem clima e segurança em um mesmo pacote. "Em um mundo onde estamos enfrentando tantos desafios sistêmicos, em que a perda climática é um deles, mas também temos um aumento de conflitos, desigualdades econômicas que estão se aprofundando onde também temos superciclos tecnológicos, não é surpreendente que esse problema talvez não receba tanta atenção, apesar de seu impacto", afirmou. Ele reconhece que fóruns internacionais como as COPs, o G20, os Brics e os diversos bancos internacionais cada vez mais empurram o tema para a agenda, mas ele ainda é evitado em grandes espaços como o Conselho de Segurança da ONU. Se governos e diplomatas não estão preocupados, cada vez mais bancos, seguradoras e agências de risco colocam os tópicos em suas preocupações principais.
Muggah foi um dos debatedores na XXII Conferência de Segurança Internacional do Forte, realizada no dia 10 de junho no Rio de Janeiro, organizada pela Fundação Konrad Adenauer (KAS) em parceria com o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI) e a Delegação da União Europeia no Brasil. Seu painel "Crime transnacional, segurança e impactos climáticos: uma interseção complexa" foi um dos mais aguardados do evento e as contribuições do canadense entusiasmaram acadêmicos, estudantes e militares. Após mais de uma hora de discussão sobre a conexão entre violência e clima, um militar da plateia fez a constatação que resumiu as conversas: as mudanças climáticas são uma questão de segurança nacional. Nunca se falou tanto de clima ao mesmo tempo que nunca se falou tanto de segurança. A interconexão entre os dois temas, contudo, poucas vezes é considerada. Em entrevista, Muggah explica onde os assuntos se tocam, de que forma os órgãos multilaterais e os financiamentos coletivos devem agir para mitigar seus riscos e os desafios de lidar com dois temas transnacionais em um contexto geopolítico de retração do multilateralismo. Segue a entrevista:
Mudanças climáticas e segurança não são dois temas que pensamos logo de cara em conjunto. De que forma eles se conectam?
Robert Muggah: As mudanças climáticas são um multiplicador de ameaças. O clima por si só não causa necessariamente turbulência social ou conflito político e conflito armado, mas tende a reforçar fraturas pré-existentes na sociedade, sejam elas desigualdades socioeconômicas, sejam elas disputas por recursos locais. Esse é o primeiro ponto. O que vemos agora em todo o mundo é que mais de 3 bilhões de pessoas vivem em países onde os choques e estresses das mudanças climáticas, de inundações a temperaturas crescentes e mares subindo, e a maioria dessas pessoas vive em países de baixa e média renda em desenvolvimento. Cerca de 2 bilhões de pessoas vivem em lugares que enfrentam estresse hídrico extremo. E cerca de um bilhão de pessoas vivem em países afetados pelo que chamamos de fragilidade ou conflito. Então, o que estamos vendo é que há um risco maior para aquelas pessoas que vivem em sociedades afetadas tanto pelo risco extremo de mudança climática, quanto por conflito e fragilidade. Temos mais de 120 milhões de pessoas deslocadas ao redor do mundo. Muitas delas são dessas mesmas áreas onde risco climático e conflito se juntam. E cerca de 90 milhões dessas pessoas são afetadas tanto pelo deslocamento causado por guerras quanto pelo deslocamento climático. Se você considerar que existem 60 países ao redor do mundo atualmente afetados por conflitos, isso é um problema sério que está piorando. Esse é o primeiro ponto que eu faria. É que temos um efeito multiplicador de ameaça e essa convergência de vulnerabilidade ao clima, conflito e fragilidade. E isso se manifesta principalmente em partes da África, especialmente no Sahel, no Chifre da África e na África Central, mas também estamos vendo em partes da América Central, muitas partes da América do Sul também estão expostas, bem como em partes do Sul da Ásia e do Sudeste Asiático. Isso não quer dizer que a América do Norte e a Europa não sejam afetadas, mas apenas dizer que esses problemas são particularmente agudos e os números assim o demonstram. A segunda coisa que eu diria sobre esta relação é que também vai na outra direção. Lugares onde temos alta incidência de conflito, altos níveis de crime organizado, existe governança fraca e há desafios ao estado de direito, essas áreas também estão experimentando altas taxas de crimes ambientais. E esses são crimes que estão essencialmente ligados ao desmatamento ilegal, mineração ilegal, tráfico de vida selvagem, ilegalidades no setor agrícola e pecuário, problemas que conhecemos muito bem no Brasil. E isso não só tem um impacto na biodiversidade e na natureza, mas também está resultando em níveis aumentados de desmatamento e degradação, e isso, por sua vez, tem efeito sobre o clima. Portanto, muitas vezes, quando falamos sobre esse problema, especialmente na América do Norte e Europa, normalmente focamos na direção entre mudanças climáticas, os estresses sobre dinâmicas sociais e econômicas, e então, por fim, violência. Mas penso que o caminho inverso também se aplica. Áreas com alto nível de violência e violência política e crime também têm um efeito na diminuição da natureza e impacto nas mudanças climáticas.
Estamos falando dessa interconexão de maneira suficiente?
Robert Muggah: Em um mundo onde estamos enfrentando tantos desafios sistêmicos, em que a perda climática é um deles, mas também temos um aumento de conflitos, desigualdades econômicas que estão se aprofundando onde também temos superciclos tecnológicos, não é surpreendente que esse problema talvez não receba tanta atenção, apesar de seu impacto. Ele realmente não encontrou seu caminho na agenda diplomática internacional de uma maneira que eu acho que mereça. Se você olhar para o IPCC, por exemplo, os relatórios ao longo de muitos anos não vieram a público fortemente com uma declaração na arena do clima e da natureza sobre essa relação. Na verdade, houve alguma resistência porque eu acho que alguns países estão nervosos sobre fazer essa afirmação e destacá-la excessivamente. Na COP e incluindo a COP 30, estamos vendo lentamente um pequeno número de Estados que estão realmente pressionando para tornar isso uma grande questão e para desbloquear financiamento climático, especialmente naqueles países e regiões onde há altos níveis de vulnerabilidade climática, fragilidade e conflito. Também estamos vendo bancos multilaterais como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Banco Africano de Desenvolvimento, começando também a reconhecer que isso precisa ser priorizado porque esses países não estão apenas enfrentando desafios e ameaças agudas, mas isso está se tornando uma questão de instabilidade e poderia ter implicações dramáticas. Também vimos algumas discussões no G20 e no Brics. Estamos vendo isso sendo filtrado para o topo dessas várias arenas de política global, o que lhe diz que há mais e mais consciência e reconhecimento de que isso é uma questão. Um lugar onde não fez muito progresso é no Conselho de Segurança da ONU. Houve muitos esforços ao longo dos anos por vários governos, europeus e outros países, para tentar posicionar a questão do clima e da segurança como uma questão para o Conselho de Segurança.
Por que é tão difícil avançar essa agenda no Conselho de Segurança?
Robert Muggah: Eu acho que eles estão preocupados talvez com os precedentes que isso poderia estabelecer e as implicações para a soberania. O Conselho de Segurança é um fórum para discussão de questões de paz e segurança. Para alguns Estados-membros, a questão do clima e da natureza não tem sido tradicionalmente vista como uma questão de paz e segurança. A razão subjacente é que alguns Estados-membros sentem que fazer essa relação entre clima e insegurança possa abrir a porta para intervenções em nome do clima que, de fato, estão interferindo na soberania nacional. Esse conceito tradicional de soberania faz com que os Estados-membros relutem em criar essa abertura porque isso poderia facilitar intervenções nos seus assuntos domésticos que eles prefeririam não ter. Por último, acredito que haja também apenas um certo nível de ignorância entre muitos Estados-membros para quem este tópico é relativamente novo em termos de como é enquadrado.
É interessante que nunca se falou tanto de clima e nunca se falou tanto de segurança, mas não vemos abordagens e soluções que considerem os dois temas juntos
Robert Muggah: É realmente interessante, porque acabamos de ter o Fórum de Finanças Climáticas e Natureza no Rio, uma conferência para pessoas investidoras, empreendedoras, de instituições financeiras juntamente com enviados e lideranças da COP. E o que foi interessante foi que em praticamente todas as sessões, especialmente quando estávamos falando sobre a Amazônia e a situação nos nove países e territórios que compõem a Amazônia, praticamente em cada sessão de perguntas, surgiu como um tópico a questão da corrupção, crime, insegurança como desabilitadores para investimento como um problema que precisa ser tratado junto com todos os outros problemas. O que estamos vendo agora é, se não está necessariamente acontecendo no nível diplomático, ainda, estamos vendo praticamente cada vez mais bancos e seguradoras e investidores de linha de frente na bioeconomia, entendendo isso como um risco e não apenas para os lucros, mas para a própria empresa. Isso está se tornando mais complexo. E eu acho que há razões para isso. Parte disso é a incerteza geopolítica atual que está gerando alguns desafios de segurança. Outra parte é a crescente demanda por minerais críticos e terras raras onde há crescente interesse do crime e há muita competição. Outra parte disso é o aumento dos preços do ouro. Essas dinâmicas geopolíticas e geoeconômicas também estão exacerbando o lado implacável da mudança climática e perda de natureza. Como dizemos, a ficha parece estar caindo.
Você citou incerteza geopolítica. Clima e segurança são dois temas que exigem soluções transnacionais, mas estamos em um mundo onde o multilateralismo e a cooperação internacional estão em declínio. Como abordar essas questões em um contexto tão adverso?
Robert Muggah: O primeiro passo é, depois de reconhecer e priorizar o problema em vários fóruns multilaterais, redobrar o financiamento e encontrar maneiras de diminuir os riscos desse financiamento para promover a adaptação e a resiliência. E isso é desafiador em um mundo onde a ajuda ao desenvolvimento está em declínio de forma bastante dramática em muitas partes do mundo. Mas nossos bancos multilaterais, regionais, públicos, nosso capital privado, e o que chamamos de capital misto, isto é, capital público, privado e filantrópico, precisam ser alocados especificamente para aquelas áreas críticas onde os desafios são maiores. E isso é mais fácil de dizer do que fazer. Mas a realidade é que cerca de US$ 40 bilhões foram dedicados ao financiamento climático através de bancos multilaterais em 2023. E menos de 11 bilhões foram para países frágeis e afetados por conflitos. A grande maioria do financiamento climático vai para países e cidades desenvolvidas. E faz sentido. É onde você obtém o maior retorno do capital, é onde os riscos regulatórios são mais baixos, é onde as capacidades locais são mais altas, é onde as vozes são mais altas. Então, há razões para que o financiamento climático tenda a ir para mercados mais estáveis. No entanto, temos esses bancos que estão lá especificamente para lidar onde o mercado falha, nessas áreas críticas onde há altas concentrações de vulnerabilidade climática, conflito e fragilidade ou crime organizado. A segunda coisa é: vamos ter uma conversa séria sobre como dobrar o financiamento climático especificamente para aquelas áreas que são mais afetadas.
Vou finalizar com o questionamento tema da Conferência: os climas extremos já estão aí e ao mesmo tempo vivemos uma corrida armamentista e o ressurgimento de grandes guerras, o quão perto estamos de um ponto de não retorno da humanidade?
Robert Muggah: Estamos perigosamente próximos a uma série de pontos de inflexão planetários, não apenas aqui na Amazônia, mas em outras partes do mundo, onde precisamos de ação coletiva e de uma concentração de recursos. E ainda assim, o paradoxo é que estamos vivendo em um momento em que a vontade necessária para gerar essa ação coletiva está no ponto mais baixo desde a 2ª Guerra. Não acho que haja outra maneira de colocar isso. Portanto, isso é um desafio monumental. E vem em um momento em que há muitas ameaças sistêmicas, não apenas essa. Não acho que seja o fim do jogo agora. Acho que ainda há tempo para nós controlarmos esses desafios. Precisamos de 6,5 trilhões de dólares por ano, mais ou menos, para conseguirmos atingir nossas metas mínimas para tentar manter o clima abaixo do limiar de 1,5 grau até 2030. Atualmente, estamos dedicando cerca de 1,6 trilhão de dólares a esse objetivo. Então, definitivamente não estamos perto de atingir a meta. E como eu disse, a maior parte desses financiamentos está indo para a América do Norte, Europa Ocidental e partes da Ásia. Isso é bom. É um avanço em relação aos anos anteriores, mas ainda não chegamos lá. Portanto, no aspecto do financiamento, precisamos absolutamente aumentar a ambição, e acho que reconhecer que este não é um desafio que pode ser resolvido em um lugar ou outro. É um desafio global. Eu me sinto animado pelo fato de que estamos em uma tendência ascendente em termos de investimentos, incluindo em tecnologias de mitigação e em soluções baseadas na natureza, mas estou desmotivado pelo fato de que não está acontecendo rápido o suficiente ou na escala necessária. Número dois, o lado oposto é que um investimento relativamente modesto em países que estão em conflito e frágeis ou em países afetados pelo crime organizado pode ter um impacto muito grande e desproporcional. Então, isso não é um problema de dinheiro, é um problema de vontade para garantir que nosso trabalho esteja diretamente focado nos pontos críticos mais afetados e mudar o jogo lá. Estamos vendo algumas soluções sendo implantadas e gerando alguns resultados importantes. O maior desafio, acho, é manter o foco para garantir que haja continuidade nos nossos compromissos e que a cada quatro anos não haja uma reversão e de repente nos encontremos retrocedendo. O grande desafio será reunir não apenas o capital, mas a vontade, e uma vontade sustentada para tomar as decisões certas e os investimentos certos porque isso não é apenas uma questão de responsabilidade moral ou ética, é o que chamamos de interesse próprio estratégico ou de auto-interesse que traz grandes retornos. Não é apenas caridade ou moralidade ou ética, por mais importantes que essas questões sejam. E acho que esse é um ponto que eu penso que alguns governos, alguns CEOs de empresas e certamente muitos na comunidade científica e na comunidade ativista ou da sociedade civil entendem muito bem.
Fonte: Broadcast Agro.