09/Dec/2024
O brasileiro Gustavo Gayger Müller, pesquisador sênior no Centro de Estudos de Governança Global da Universidade de Leuven, na Bélgica, avalia que a União Europeia aproveita um raro alinhamento do Mercosul sobre o acordo comercial para marcar posição na América do Sul, frente ao avanço da China, e consolidar a aliança de países que compartilham valores democráticos, algo cada vez mais raro no mundo. Esse senso de urgência foi intensificado pela crise que atinge a sua maior economia, a Alemanha. Para a França, contudo, o acordo cai como uma "bomba" e tende a enfraquecer o governo de Emmanuel Macron, que busca um substituto para o primeiro-ministro, Michel Barnier, deposto pelo Parlamento. Poucos realmente querem esse acordo, mas muitos precisam dele, é paradoxal. O acordo é muito importante para União Europeia, na ótica das disputas pela América Latina. Então, do ponto de vista político, é muito importante para a União Europeia. Do ponto de vista econômico, abre oportunidades de investimento no longo prazo e mercado consumidor. Segue a entrevista:
Quais são os próximos passos a partir da conclusão das negociações do acordo comercial?
Gustavo Gayger Müller: Internamente, o anúncio cai como uma bomba para alguns países da União Europeia. Será uma péssima notícia para o ambiente doméstico de França e Polônia, onde a população tem rejeitado o acordo. Em termos práticos, um dos caminhos possíveis é implementar o acordo de maneira provisória, o que tange apenas à parte comercial, e ratificar no segundo momento, o que vai requerer a aprovação não só do Parlamento Europeu como também de cada Estado-membro - então, são 27 ratificações diferentes.
E como funciona a implementação parcial? O livre comércio já entraria em vigor?
Gustavo Gayger Müller: A implementação parcial se aplica às áreas em que União Europeia tem o que chamamos de competência exclusiva (ou seja, apenas bloco pode legislar). Nisso entra o comércio, efetivamente, seja na imposição de tarifas e regulações, ou na política de concorrência. Se o acordo é implementado na parte comercial, mesmo que provisoriamente, as tarifas e cotas começam a valer para todos os países, independentemente de ser favorável ou não. Isso do lado da União Europeia. Do lado do Mercosul, todos os países (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) têm de estar de acordo.
O sr. já escreveu em artigo que o acordo é mais que comercial, tem a ver também com a posição da Europa na América Latina - região onde a China tem avançado. Agora, soma-se ao cálculo geopolítico a eleição de Donald Trump nos EUA e a ameaça de guerra comercial. É possível entender a conclusão do acordo neste momento a partir dessas pressões?
Gustavo Gayger Müller: Esse é um contexto que se manteve ao longo dos anos. Mesmo durante a administração Joe Biden, a União Europeia procurou finalizar o acordo. Mas tem dois fatores que podem ser ainda mais fundamentais. Por um lado, é a primeira vez em muito tempo que se tem os quatro países do Mercosul a favor, então a União Europeia quer aproveitar esse momento e, por outro lado, uma série de fatores econômicos na UE provoca essa busca por parceiros comerciais. A situação econômica na Alemanha está bastante crítica, o que faz com que o país pressione por esse acordo. Tem o ponto geopolítico, de ampliar a presença na América do Sul, mas tem o interesse econômico, que se intensificou ao longo do último ano.
Por outro lado, a França é contra o acordo por pressão dos agricultores. A crise política que o país enfrenta neste momento, com a queda do primeiro-ministro Michel Barnier enfraquece a posição francesa dentro da UE nas discussões com o Mercosul?
Gustavo Gayger Müller: É um timing complicado para a França, uma daquelas coincidências negativas: a Cúpula do Mercosul estava agendada e acaba acontecendo no momento da renúncia do primeiro-ministro o que, evidentemente, enfraquece o governo. E essa é uma questão simbólica bastante importante. O governo (de Emmanuel Macron) está há um ano lutando contra o acordo e vai enfrentar a crítica dos dois lados por não conseguir barrá-lo. A resistência ao acordo é bastante consensual na França. É difícil achar um partido, um movimento político lá que seja a favor.
O sr. mencionou o aspecto simbólico. A conclusão do acordo passa um recado para os países contrários, como França, Polônia, Holanda... Que margem de manobra essa oposição tem agora?
Gustavo Gayger Müller: Se a burocracia da União Europeia (no caso, o Conselho Europeu) decide levar o acordo adiante, inclusive com a implementação provisória, e a França não conseguir angariar a Itália - que provavelmente vai ser o fiel da balança - o que a França pode fazer é o boicote às outras áreas do acordo, principalmente as que têm a necessidade de unanimidade ou que precisam ser retificadas a nível nacional. Para barrar o acordo na Comissão Europeia, os países contrários precisam atingir o quociente de 35% da população da União Europeia. Então, seria necessário ter o apoio de mais um país grande, além de França e Polônia. E a Itália pode ser o fiel da balança porque tem um setor agrícola bastante importante, que tem uma agricultura familiar e uma agricultura ligada a movimentos políticos. Mas a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tem uma relação bastante próxima com a primeira-ministra Giorgia Meloni. Acredito que elas tenham conversado sobre isso. Agora, tem uma questão que é mais profunda.
Nas eleições do Parlamento Europeu, vimos que a extrema-direita avançou. Quais são as condições hoje para aprovar o acordo?
Gustavo Gayger Müller: É preciso dizer que a comissão de Ursula von der Leyen foi aprovada semana passada (para o segundo mandato) no Parlamento Europeu com uma das margens mais estreitas em décadas. Isso mostra, claro, que nem tudo que a Comissão negociar será aprovado prontamente. Ao mesmo tempo, os grandes grupos da centro-esquerda até centro-direita ainda mantêm maioria no Parlamento. Os extremistas fazem bastante barulho, mas, muitas vezes, estão jogando para a política doméstica dos seus países. Não acredito que eles vão conseguir formar maioria suficiente para barrar o acordo. Esse não é o maior empecilho atualmente. A ratificação em alguns países vai ser muito mais difícil.
Os críticos, como a França, dizem que o acordo, negociado há 25 anos, ficou ultrapassado. Quais são as vantagens e as desvantagens para os dois lados?
Gustavo Gayger Müller: Poucos realmente querem esse acordo, mas muitos precisam dele, é paradoxal. O acordo é muito importante para União Europeia, na ótica das disputas pela América Latina. É importante a Europa se aliar com países que têm valores parecidos, que são países democráticos, num mundo onde as democracias estão cada vez mais raras, por assim dizer. Então, do ponto de vista político, é muito importante para a União Europeia. Do ponto de vista econômico, abre oportunidades de investimento no longo prazo e mercado consumidor. Agora, do ponto de vista do Mercosul, cria estabilidade de exportação de produtos agrícolas, e os países podem depender um pouco menos da China. É uma boa notícia para o bloco, que vai ter acordo com o maior mercado do mundo, e vai dissipar ameaças de países como o Uruguai, que ameaçava negociar acordo com a China sozinho, de forma bilateral. Considerando que os acordos atualmente não são apenas sobre tarifas, mas também sobre regulações e alinhamento de diferentes regras, a meu ver, o acordo com a União Europeia vai facilitar, inclusive, o comércio intrabloco no Mercosul, que durante décadas teve muita dificuldade de achar regras comuns para produção. Outro ponto positivo para o Mercosul é o que o acordo vai rejuvenescer um pouco o bloco, que passa por uma crise com governos que atuam para limitá-lo, como é o caso de Javier Milei e foi o caso de Jair Bolsonaro.
Fonte: Broadcast Agro.