30/Oct/2024
Há cinco anos, o médico epidemiologista Carlos Augusto Monteiro, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), figura na lista dos pesquisadores mais influentes do mundo. No ano passado, ele foi o brasileiro com os artigos mais citados em revistas e estudos científicos internacionais. A fama é oriunda da NOVA, a classificação proposta por Monteiro que revolucionou a forma como os alimentos são categorizados. “Começamos a identificar que a origem das doenças ligadas à alimentação estava num grupo de produtos sobre os quais a indústria tem um lucro muito maior, na medida em que são feitos com ingredientes de baixo custo e grande durabilidade”.
Nascia, em 2009, o conceito de ultraprocessado. Uma palavra enorme, mas que Monteiro define de uma maneira simples: ultraprocessado é um produto feito com ingredientes que não existem na cozinha doméstica, como aditivos para substituir a cor, o aroma e a textura de um alimento. A classificação também mudou a forma como se enxerga a relação do consumidor com a comida: se, antes, a pessoa física era vista como a única responsável pelas escolhas alimentares, agora os CNPJs precisam assumir a parte que lhes cabe nas mazelas resultantes da alimentação inadequada, como a atual epidemia de sobrepeso e de obesidade. Segue a entrevista:
Como a NOVA mudou, na prática, a relação entre indústria e qualidade da alimentação?
Carlos Augusto Monteiro: O paradigma anterior tinha o foco em nutrientes - basicamente, em gordura saturada, açúcar, sal e fibra - e, de alguma maneira, culpava o próprio consumidor pelo fato de não ter uma alimentação muito saudável. Era um pouco assim: as pessoas preferem comer com muito sal, com pouca fibra e com muito açúcar, e por isso acabam adoecendo. Quando a gente começa a fazer uma classificação dos alimentos não só pelo teor de nutrientes, mas também pela forma de processamento, começa a colocar a responsabilidade em quem processa esses alimentos. O foco sai do consumidor e vai para a indústria que usa estratégias de marketing muito sofisticadas para que as pessoas troquem a alimentação tradicional pelo consumo de ultraprocessados.
Que indústria é essa?
Carlos Augusto Monteiro: São as grandes indústrias transnacionais dentro do sistema alimentar. Porque um fator importante é que o ultraprocessamento requer maquinários, tecnologias, controle de qualidade e mesmo ingredientes, como aditivos, que são de acesso restrito. E uma coisa mais sutil é que você consegue fazer um produto único, um produto de marca. Tanto que é algo comum as receitas com segredos industriais.
E o nome é “produto” porque, pela composição, o ultraprocessado nem deve ser considerado um alimento, certo?
Carlos Augusto Monteiro: Sim. Primeiro, você tem muitos ingredientes: dez, 15, 20, até 30. Depois, você manipula misturas de sal, gordura, açúcar, aromatizantes, texturizantes, e consegue criar produtos de baixo custo para a indústria, mas que são extremamente palatáveis. Essas indústrias têm laboratórios de análise sensorial que permitem que consigam chegar a receitas com combinação de gordura e açúcar que maximizam o prazer e que se tornam mesmo viciantes para algumas pessoas.
O cenário no Brasil é preocupante, mas ainda consumimos menos ultraprocessados do que países como os Estados Unidos e a Inglaterra. A vantagem, nesse caso, seria o fato de os preços dos ultraprocessados ainda não estarem tão baixos por aqui?
Carlos Augusto Monteiro: O preço é uma questão, mas a grande diferença é que, no Brasil, o consumo de ultraprocessados não chegou às principais refeições. Consumimos refrigerantes e sorvetes, mas, no almoço e no jantar, a cultura alimentar ainda é muito forte. A maior parte dos brasileiros ainda come o PF (prato feito), a comida por quilo. O alerta é que estamos em um processo de transição, até porque estudos mostram que o preço relativo dos ultraprocessados aumentou muito menos do que o de alimentos in natura ou minimamente processados. A tendência é ruim.
Nesse aspecto, podemos considerar que há um público mais suscetível, como as crianças e os jovens, por exemplo?
Carlos Augusto Monteiro: O que percebemos no recorte por idade é que, quanto mais velho, menor o consumo de ultraprocessados. Quanto mais jovem, maior. Os adolescentes são o grupo com o maior consumo. Recentemente, saiu um estudo na Inglaterra em que olharam as crianças com dois e, depois, com sete anos. O que se viu foi um aumento no consumo de dois para sete anos e uma correlação muito grande: a criança de dois anos que comia muito ultraprocessado é a criança de sete anos com consumo mais elevado. Isso mostra que os hábitos e as preferências são criados quando a criança ainda é pequena. Por isso o esforço da indústria de ultraprocessados na propaganda ligada a crianças e todo o investimento em textura, cor e aroma. Tudo isso vai criando o que a gente chama de familiaridade, e que vai influenciar os hábitos para toda a vida.
E quais as consequências mais diretas do consumo de ultraprocessados?
Carlos Augusto Monteiro: Há dois grandes problemas: no ultraprocessado, você não tem o alimento inteiro, e é importante você comer junto a fibra, os antioxidantes e a proteína, por exemplo. Quando você separa essas coisas, o nutriente não funciona da mesma maneira. A outra questão é que, por não ter o alimento integral, o ultraprocessado tem muitos aditivos para substituir a cor, o aroma e a textura. Então, você não tem o alimento integral e tem uma série de substâncias químicas estranhas ao alimento. Agora, imagina a criança que começa essa trajetória logo cedo, a quantidade de aditivos que vai consumir ao longo da vida. É uma coisa cumulativa. Talvez o consumo seria inócuo se fosse numa quantidade pequena, mas imagina o volume…
E daí podemos falar do que se chama de “princípio da precaução”...
Carlos Augusto Monteiro: Isso. Como a relação entre saúde e alimentação é uma relação complexa, a gente nunca vai conhecer tudo. Talvez a maioria dos aditivos não seja problemática, mas, certamente, alguns são. Então, à medida que você aumenta a exposição do seu organismo a algo que ele não está programado, aumenta a probabilidade de ter algum tipo de problema. O princípio da precaução é esse: você tem a possibilidade de não consumir aditivos e ficar menos exposto a problemas.
E como fazer para barrar esse consumo?
Carlos Augusto Monteiro: Os produtos estão ficando cada vez mais baratos, com mais propaganda, e cada vez mais palatáveis e mais irresistíveis. Então, se tem uma série de forças caminhando no sentido de empurrar as pessoas para o aumento do consumo de ultraprocessados, a gente precisa criar uma força oposta em muitas frentes para desnormalizar esse consumo. Um ponto é a reforma tributária: todos os ultraprocessados deveriam ter um imposto maior e, por outro lado, isentar ao máximo os alimentos naturais e minimamente processados. A outra grande questão é a publicidade. Faz sentido que haja propaganda infantil com o uso de heróis para aqueles produtos já rotulados como alto em açúcar, alto em sódio e alto em gordura saturada? E, por fim, a rotulagem de advertência precisa ser intensificada. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) está avaliando a possibilidade de acrescentar na rotulagem de advertência corantes, aromatizantes e adoçantes artificiais. E daí, penso eu, uma estratégia seria proibir a publicidade de todos os produtos com essa rotulagem de advertência.
E ninguém iria à falência por isso.
Carlos Augusto Monteiro: Exato. Porque não é que a indústria queira fazer um alimento para as pessoas ficarem doentes. Obviamente que não. A indústria teria interesse que as pessoas ficassem saudáveis. O problema é que o lucro é uma coisa tão poderosa que a indústria tenta normalizar uma coisa que não é normal. Durante milhões de anos, tivemos uma alimentação sem aditivos, por que agora a gente precisa? A gente não precisa. Quem precisa é a indústria. Porque o aditivo faz parte do modelo de negócios, faz com que o produto dure anos, e isso é lucro. Ela pode estocar, transportar por longas distâncias, usar ingredientes de baixo custo. O objetivo é mostrar que o consumo é inevitável. Só que não. É absolutamente possível você ter uma alimentação sem esses aditivos todos.
O que pode ser hoje considerado uma alimentação saudável?
Carlos Augusto Monteiro: Há várias maneiras de ter uma alimentação saudável, o importante é seguir alguns princípios. Um deles é você consumir o alimento inteiro, o mais próximo possível de como ele está na natureza. O outro princípio é você diversificar, consumir alimentos de várias famílias. Decidir qual é a verdura ou a fruta é uma questão de cultura e de preferência. O que não se pode é ter uma dieta monótona. Ou cheia de aditivos.
Fonte: Broadcast Agro.