02/Oct/2024
Uma das principais referências no Brasil e na América Latina sobre o transtorno do jogo, o psiquiatra Hermano Tavares considera que o tema que estuda há décadas virou epidemia. Segue a entrevista:
Do ponto de vista de saúde pública, legalizar as apostas online foi um erro?
Hermano Tavares: Sou a favor de uma sociedade que preza a liberdade. Obviamente, a minha termina onde começa a sua. Então, se você se fecha no porão de casa, com mais três primos, e vai jogar pôquer valendo, sei lá, R$ 2 o pingo, não tenho nada a ver com isso. Agora, se você e seus primos querem abrir um estabelecimento comercial para explorar comercialmente o jogo de azar, que é um potente formador de hábito, isso não diz mais respeito ao foro individual de vocês, diz respeito a toda a sociedade. É uma falácia dizer que jogo estava proibido no Brasil, nunca esteve. Nós sempre convivemos com algum tipo de aposta na nossa comunidade ou tecido social. O que se discute é quanto mais vamos viabilizar, em termos de exploração comercial, e qual vai ser a retaguarda que vamos construir para poder lidar com os problemas que esse tipo de ampliação do acesso necessariamente vai causar. Quanto podemos ampliar, mas sendo capazes de conter o prejuízo? Isso é um ajuste específico que cada sociedade tem que fazer. Temos que fazer esse debate. Não é muito democrático como está sendo agora: lobbys se organizam no Congresso, definem o que vai acontecer, trava-se uma disputa interna e, depois, a população aceita o que tiver sido deliberado. O debate está longe de ser verdadeiramente democrático.
Pensando no impacto do jogo patológico, as regras que temos hoje são suficientes?
Hermano Tavares: São flagrantemente insuficientes. Pensando numa coisa que é mais importante até que o próprio jogo patológico, que é educação da população e a prevenção dos problemas com apostas. Não podemos ficar só pensando no jogador compulsivo, que precisa obviamente de amparo, mas na pessoa que tem alguma vulnerabilidade para que possa ser protegida e não venha a desenvolver problemas futuros com apostas. Estamos muito longe de atingir o mínimo ideal.
Em outros países, a aposta, tanto física quanto online, está liberada há décadas. Por que agora haveria uma ‘epidemia’?
Hermano Tavares: O que mudou foram as apostas esportivas (online). Não sou um especialista nessa área de informática, mas há uma questão sobre a forma como se controla a formulação dos algoritmos. O grande boom das apostas online também tem a ver com a confluência de várias tecnologias que já estavam disponíveis, mas que foram sendo combinadas para produzir essa explosão. É a tecnologia da informação e da comunicação, o smartphone, a internet, o avanço da inteligência artificial, combinados a um produto que apela muito à população, que é o esporte, que entusiasma e inspira. É a tempestade perfeita. Essa explosão coincide com duas coisas. A entrada da pandemia, que deu mais tempo para as pessoas, isoladas em casa, procurarem outras coisas para se distrair. E, saindo da pandemia, a Copa do Mundo. Aí, as apostas esportivas explodiram.
Fala-se muito da defesa do jogo responsável. Jogo responsável existe?
Hermano Tavares: É uma questão semântica. O jogo de azar tem esse nome não porque traz má sorte. É de azar porque é o jogo do aleatório. Alguns jogos têm mais aleatoriedade envolvida, outros menos. Em cima disso, você empenha um valor, que é a aposta. É uma atividade lúdica na qual estamos brincando com coisa séria: dinheiro. Como você está brincando com coisa séria, sem defender nenhum juízo moral, está fazendo uma coisa que pode ter várias características, menos a característica da responsabilidade. Não existe responsabilidade em apostar. O único jogo responsável é não apostar. Você quer ser absolutamente responsável em relação às apostas? Não aposte. O termo mais correto seria ‘apostas com máxima minimização dos riscos’. Ou seja, quando as pessoas forem apostar, fazerem isso com o mínimo de risco possível, porque não há segurança. A segurança é não apostar.
O SUS está pronto para identificar esse paciente?
Hermano Tavares: Não está, mas podemos nos preparar. Eu concordo que para o leigo é difícil, às vezes, de identificar, porque a pessoa não chega com o olho vermelho, cheirando a álcool. Mas existem outros sinais que, uma vez que uma população está informada, começa a perceber. Atrasos recorrentes em compromissos financeiros no caso de pessoas que costumavam honrá-los. Comportamento socialmente mais esquivo, historinhas, pequenas fraudes. Todas essas coisas têm que acender uma luzinha lá. A identificação pode ser um pouco mais desafiadora, mas não é um bicho de sete cabeças. Uma população educada e um SUS treinado conseguem fazer isso sem dificuldades.
Fonte: Broadcast Agro.