14/Mar/2024
Leads recentes sobre a soja (criados por mim a partir dos assuntos em pauta na mídia): "Os dados do terceiro trimestre de 2023 apontam crescimento do PIB da soja e do biodiesel em 21% no ano passado". "Baixos preços de soja e quebras de safra estimulam produtores rurais a pedir recuperação judicial". É difícil de entender como um setor que puxou o PIB do Brasil em 2023 pode estar à beira de uma derrocada em 2024. Fica a impressão de que os resultados positivos de safras anteriores desapareceram e não há estoque de capital e ativos para viabilizar a passagem por um ciclo com resultados negativos. Dados do Imea (Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária) indicam que o EBITDA modal no Estado de MT foi de R$ 4,8 mil por hectare e R$ 32,70 por saca de 60 Kg de soja na safra 2021/2022, caindo para R$ 544,30 por hectare e R$ 4,90 por saca de 60 Kg de soja na safra atual (2023/2024). Os números são claros: a rentabilidade do produtor caiu muito este ano. Mas foi muito boa em anos anteriores.
Fizemos cálculos na Abiove sobre o prêmio no porto para a soja brasileira. Em 11 anos (de 2013 a 2023) o prêmio médio foi de 31,48 US$/t, equivalente a 7,5% sobre Chicago. Esse prêmio, que é integralmente incorporado no preço da soja ao produtor, gerou um aumento de receitas para os sojicultores de US$ 2,4 bilhões/ano, em média, isto é, US$ 26,1 bilhões acumulados no período. Está claro que as condições econômicas da safra de soja 2023/2024 são desafiantes, negativas para o produtor, sobretudo aquele que teve perdas de produtividade elevadas, mas as safras passadas foram muito positivas para eles. Não há, assim, razões econômicas para justificar pedidos de recuperação judicial de produtores rurais. A cadeia da soja é estruturada o suficiente para trazer soluções aos produtores que tiveram queda de produtividade por questões climáticas, viabilizando sua recuperação nas safras futuras, sem qualquer necessidade de judicialização. Aqueles que estão optando pela recuperação judicial não têm justificativas econômicas, patrimoniais e contábeis que suportem tal decisão.
Além do lado econômico, é preciso entender as questões jurídicas. Uma delas decorre de aprimoramento feito pelo Congresso Nacional na lei da Cédula de Produto Rural (Lei 8.929/1994, artigo 11º). A visão do legislador foi que, financiada a produção, vendida a safra futura de forma antecipada e sendo essa transação executada por meio de uma CPR física, ou seja, representando a produção, tal produção está excluída da recuperação judicial do produtor rural, caso esta seja aceita pelo judiciário. Mesmo com pedido aceito, a lei define que a produção vendida via CPR precisa ser entregue ao comprador. Essa mudança legal ajudou a reduzir as inseguranças associadas à recuperação judicial, dando transparência à livre negociação entre partes. Embora, no momento atual, as RJs de produtor rural tenham voltado aos leads, conforme falei no início do artigo, algo parecido já tinha ocorrido em 2019 e 2020. Naquela ocasião, várias análises demonstraram que as RJs de produtor vinham sendo pedidas para permitir ao recuperando vender sua produção novamente.
Hoje, modularia minha afirmação ao dizer que essas RJs estão sendo vendidas como mecanismo de renegociação. Em 2019 e 2020 era desvio mesmo. Como disse anteriormente, não faz sentido algum judicializar visando renegociar, visto que a cadeia sempre fez renegociações. A segunda questão jurídica é a relação produtor rural - cooperativa. O produtor rural cooperado é dono da sua cooperativa. Sendo assim, juridicamente, as dívidas, sejam elas financeiras ou em produção, também precisam ser honradas caso o produtor rural venha a solicitar RJ. Afinal, ele é dono da cooperativa. O terceiro aspecto jurídico muito importante é a discussão sobre essencialidade. Pelo que acompanho da discussão nesse âmbito, bens essenciais são bens de capital, não consumíveis e utilizados no processo produtivo para gerar outros bens. Bens essenciais se sujeitam a aplicação da recuperação judicial. Ocorre que a produção de uma propriedade é o resultado da atividade rural, não sendo um bem utilizado no processo produtivo. A produção agrícola é o resultado, não o meio.
Assim, me parece de suma importância afastar a discussão de que a produção rural é um bem essencial porque, se assim for definido, o produtor em recuperação judicial se desobriga a cumprir contratos de venda firmados voluntariamente por ele. Reforçamos: bens de capital são aqueles não consumíveis e utilizados no processo produtivo para gerar outros bens. Sendo assim, volta de novo a discussão sobre vender duas vezes a produção. Se a lei da CPR deixou claro que a produção rural vinculada a CPR física é extraconcursal, e as razões são que o produto devidamente produzido precisa ser entregue e não pode ser vendido duas vezes, sob pena de desorganizar todo sistema de financiamento e comercialização de produtos agrícolas, a discussão sobre essencialidade se apoia nas mesmas razões. Se fosse possível definir produto fim como produto meio transformando produto agrícola em bem de capital, o produto não precisaria ser entregue, e o produtor poderia vender duas vezes sua safra.
O legislador já disse que não quer safra sendo vendida duas vezes ao aprimorar a lei CPR. A tentativa de torcer o conceito de essencialidade morre na sua própria consequência, já negada em lei. Portanto, se a CPR não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial e se as commodities agrícolas não são consideradas bem de capital, não há essencialidade aplicável da parte final do § 3º do art. 49 da lei da recuperação judicial (Lei 11.101/05) sobre a produção agropecuária. O argumento de caráter jurídico final é a exceção criada, na lei da CPR, para os casos fortuitos e de força maior. A alegação de ocorrência desse tipo não pode ser utilizada como 'blindagem' ao cumprimento de obrigações firmadas entre partes legítimas, no caso, os agentes atuantes no agronegócio, uma vez que há para essas partes o zelo para a higidez e alcance do negócio entabulado, sendo o risco climático, no caso, previsível. La Nina e El Nino são fenômenos recorrentes que afetam regime de chuvas e temperatura.
Eles são previstos pelos especialistas com grande antecedência, antes mesmo de o produtor rural plantar sua safra. Clima ruim não impede o produtor de plantar e de colher e, portanto, de cumprir suas obrigações de entrega da produção. Os casos de RJ conhecidos não são demonstrados com frustração total de produção, há sempre produção para, de novo, ser vendida duas vezes. A recuperação judicial é um direito do produtor rural. Que ela seja exercida com responsabilidade e legalidade, ou seja, excluindo a produção em CPR e não distorcendo o conceito de bem essencial. Tudo indica que os pedidos de RJ vão crescer este ano. Esperamos do judiciário a observação do que dizem as leis: produto da CPR física é extra concursal e produção agrícola não é bem de capital, pois consumível. Fonte: André Nassar. Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove). Broadcast Agro.