23/Set/2022
Em novembro de 2021, a Comissão Europeia propôs uma regulamentação que visa coibir a importação de produtos associados ao desmatamento e degradação florestal, estabelecendo um sistema de diligência devida (due diligence) para os importadores. No dia 13 de setembro de 2022, o Parlamento Europeu aprovou mudanças na proposta. A futura regulamentação criará, em uma primeira fase, obrigações para os importadores de produtos de origem bovina (carnes, couro, animais vivos), carne de suínos, ovinos, caprinos e aves, cacau, café, óleo de palma e derivados à base de óleo de palma, soja, milho, borracha e madeira, produtos de carvão, papel impresso e produtos derivados. Esse movimento da União Europeia (UE) é uma das estratégias do “EU Green Deal” e busca aprimorar as regras comunitárias diante do desmatamento, degradação e conversão de florestas a fim de promover cadeias livres de desmatamento.
Para a UE, a medida é necessária para contribuir com as metas de neutralidade climática até 2050 e com a transição para uma economia de baixa emissão de carbono. A proposta do Parlamento propõe proibir a importação de produtos associados a desmatamento e degradação florestal ocorrido após 31 de dezembro de 2019, e cria diversas regras que poderão obstar o comércio ou criar diversas obrigações que podem encarecer a importação. Reflete, na prática, um caso típico de medida de caráter ambiental que tem um potencial de criar restrições ao comércio internacional. A relação entre comércio e meio ambiente sempre esteve presente na agenda de comércio internacional desde as regras do antigo Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), especialmente após a aprovação do Código de Padrões de 1979.
Com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995, as exceções gerais do GATT e o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (Acordo TBT) criaram espaço para que os Membros da OMC adotem medidas que visem proteger objetivos ambientais podendo, em certos casos, restringir ou barrar o comércio. A jurisprudência da OMC mostra vários casos em que interesses ambientais podem justificar medidas que interferem no comércio, o que exige, no entanto, o cumprimento de certos requisitos. A medida não deve criar obstáculos desnecessários ao comércio internacional, não deve ensejar tratamento menos favorável do que o concedido a produtos similares de origem nacional e de outros países e não deve ser mais restritiva ao comércio do que o necessário para atingir o objetivo que pretende proteger.
Neste caso, a regulamentação é a melhor forma para a UE evitar contribuir com desmatamento em terceiros países? O “World Trade Report 2021” da OMC, aponta que o comércio internacional pode estar relacionado com desmatamento. Isso reforça as evidências do quanto a transparência sobre desmatamento nas cadeias produtivas é uma questão relevante no comércio internacional. Entre janeiro e agosto de 2022, as exportações de produtos agropecuários para a UE somaram US$ 18 bilhões, 15,7% das exportações do agro brasileiro, ficando atrás apenas das vendas para a China. Produtos e derivados de soja, carnes, café e produtos florestais foram as principais cadeias exportadoras. Diante desse cenário, o artigo propõe avaliar, de um ponto de vista técnico, quais são as possíveis opções para reduzir riscos da futura regulamentação.
Na prática, os importadores terão de adotar medidas que comprovem a origem dos produtos, fazenda a fazenda, para assegurar que não foram produzidos em terras desmatadas e não induziram ou contribuíram para a degradação ou conversão florestal após 31 de dezembro de 2019. Dentre as informações necessárias para atestar que os produtos são livres de desmatamento, a regulamentação prevê: a) dados geolocalizados de todas as áreas produtivas que geraram os produtos importados; b) dados de desmatamento que tenha ocorrido nessas áreas; c) informações de que a produção cumpriu com relevantes leis aplicáveis, incluindo o consentimento livre, prévio e informado de populações indígenas que possam ser impactadas pela produção; d) comprovação de que as áreas produtivas não são objeto de demarcação de terras indígenas ou possuem problemas quanto a titularidade das áreas; e) nome, e-mail e contatos das pessoas que venderam os produtos importados; f) outras informações. Adicionalmente, entidades financeiras não podem conceder crédito para clientes que descumpram com as obrigações da lei, o que pode se tornar uma penalidade ou um risco para importadores.
Os operadores devem verificar e analisar as informações recolhidas e efetuar uma avaliação dos riscos para determinar se existe o risco de que os produtos tenham origem em áreas desmatadas. Dentre os critérios para avaliar e gerir riscos vale destacar: a) a prevalência de desmatamento ou degradação florestal no país, região e área de produção da commodity ou produto relevante (o Brasil seria uma área de risco? ou um estado ou região?); b) a dificuldade de monitorar desmatamento em cadeias produtivas; c) a existência de dados públicos consistentes e transparentes sobre desmatamento; d) a inclusão do setor de uso da terra e agricultura na contribuição nacionalmente determinada do país no Acordo de Paris e o nível de implementação das ações que visam contribuir com a meta do país; e) a existência de acordos e outros instrumentos celebrados entre o país e a União Europeia que abordem o desmatamento e facilitem a conformidade dos bens e produtos relevantes; f) se o país possui leis nacionais ou subnacionais em vigor para conservar florestas e reduzir desmatamento e adota medidas que favoreçam a redução do desmatamento e a degradação florestal.
Na prática, a complexidade do sistema de diligência devida tende a desestimular a importação de países ou regiões com elevado risco de desmatamento, sob pena de os importadores sofrerem sanções. A proposta prevê que leis nacionais relevantes podem contribuir para garantir que a originação dos produtos não esteja associada a desmatamento. Isso sugere que a efetiva implementação do Código Florestal pode contribuir significativamente para reduzir os riscos e fortalecer a produção associada à conservação de vegetação nativa. Fortalecer a avaliação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), catalisar a adequação de passivos e controlar desmatamento ilegal tendo o Código como instrumento mostra-se um desafio urgente para o agro brasileiro. Além disso, os órgãos públicos precisam ter capacidade de separar o desmatamento ilegal da conversão legal. Não é razoável que a imensa maioria do desmatamento seja ilegal e não seja possível dar transparência para esses dados, inclusive sobre em que áreas efetivamente acontece o desmatamento.
A complexidade de obter dados georreferenciados das fazendas e/ou polígonos produtivos e de rastrear esses dados na cadeia produtiva e logística até o consumidor final é um gargalo considerável, o que já foi publicamente criticado por importadores europeus. Espera-se que a UE trabalhe com os países e setores produtivos a fim de tentar criar soluções operacionais que permitam alcançar o objetivo almejado sem criar custos impeditivos para o comércio. A despeito da complexidade da proposta aprovada pelo Parlamento, a mensagem que emerge é que desmatamento nas cadeias produtivas é um tema que precisa ser tratado com muita seriedade e transparência. O Brasil tem uma meta de acabar com a conversão ilegal de vegetação até 2028, o que se torna um objetivo mais do que urgente e reflete que o agro brasileiro tende a sofrer sanções pela incapacidade de se controlar desmatamento ilegal.
Vale, por fim, ponderar que Estados Unidos, China e outros importadores já sinalizaram que não aceitarão comprar produtos que tenham origem em áreas com desmatamento ilegal, demonstrando que esse tipo de regulamentação tende a ser seguida por outros países. Um caso na OMC, quanto a desmatamento legal, pode ser até uma saída a ser adotada. Mas é prudente considerar que os riscos de uma solução favorável não valem os impactos que podem ser gerados por barreiras impostas pelos compradores. Esse caso precisa servir para que o controle do desmatamento ilegal se torne uma meta de Estado, para que as florestas sejam valoradas e gerem benefícios para as pessoas que vivem no seu entorno, para que a enorme área de glebas públicas seja destinada e gerida, para que a implementação do Código Florestal ganhe, verdadeiramente, fôlego, e o Brasil possa estampar a conservação das florestas associada à produção sustentável na imagem do País e do agro. Fonte: Rodrigo C. A. Lima. Broadcast Agro.